Monday, August 9, 2010

O Eu profundo e os outros Eus: realidade e ilusão

Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós de que a consciência de o ouvirmos. E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais. . . Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. . . Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias . . . E doía-nos gozar aquilo, doía-nos. . .

ó horas multicolores!. . . Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!. . . Loucura de sonho naquele silêncio alheio!... A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor. . . Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós. . . E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade. . . Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer. . . Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria. . . E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro vivera. . .

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